Como os sonhos nos perseguem ou somos ecos

E se os quarenta fossem hoje? Agora? E os planos substitutos, os desejos por agora e o anonimato fantasias? Somos fantasmas daquilo que nunca seremos. Esta sou eu: uma folha em branco inconsciente de si mesma.

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Abano as ancas redondas, orgulhosa da perfeita linha ininterrupta que me contorna a distância média do corpo. A cidade está aos meus pés, aos pés das minhas velozes sapatilhas de corrida. Depois, a calçada amolece sob o deslizar perigoso das minhas sabrinas. Adormeço, infeliz, contanto as gotas de desconfiança que os vícios bipolares do meu desequilíbrio produzem.

“Parece que tens vivido numa bolha”, comenta o rapaz debruçado sobre o banco decrépito do jardim. Olho para o desenho mal aparado dos arbustos. Mastigo aquela acusação óbvia. “Tenho e depois?”, respondo-lhe, sentindo a adrenalina corar-me o rosto.

Lá em baixo, a margem vai sendo inundada pela noite. Penso no dia seguinte, no sentimento ilógico de não repousar para sempre, na respiração fraca que suporta o meu pulso.

“Quando a vida te magoar – e vai fazê-lo – vais ver”, diz-me, sorrindo. Gargalho. Longe voam solenemente os últimos momentos da minha tranquilidade. “Obrigada. Aos quarenta, reformo-me e vou escrever livros para a Argentina”, transpiro.

E se os quarenta forem hoje? E se os quarenta forem os novos vinte um? Posso marcar já a minha passagem para um tempo longe dessa fúria inquietante que escolhi?

E se os quarenta forem hoje? Agora? Uma sobremesa merecida depois de meses de combate que, no final de contas, poucos frutos trará…

E se os quarenta forem agora?

Lisboa derrete-se sobre a minha pele levemente doirada. Doem-me os pés, o ombro esquerdo e a alma.

Do outro lado da vida, vejo-me de tranças francesas, excesso e calhamaços em riste: perdida, oposta e inexoravelmente feliz.

Nesse quarto – manchado pela negritude de uma qualquer metrópole onde me possa esquecer de mim – aspiro quantidades copiosas de música clássica, gin e literatura. Nesse quarto, sou uma versão comprimida de Murakami e Franzen: do comum e do ordinário, do trivial e do assoberbador.

Aí já nem sinto os dedos mindinhos doridos pelo espartilho que impus a mim própria.

“Voltou, pois, não é tão aventureira como tu”, ri a minha irmã. Fito-a através da minha imaginação. Será aventura a constante fuga ao mais sincero “eu”?

Depois, a maresia oca faz arder o meu espírito. Preciso de mar, urgentemente. Preciso de mim e nem sei onde me encontrar.

Como os sonhos nos perseguem ou como a realidade de quem somos verdadeiramente tende a assombrar-nos.

No final, o equilíbrio de uma rotina deixada ao mínimo pormenor para o relaxamento desaba. Não somos ninguém. Somos ecos. E os ecos esvaem-se sem perceberem que a efemeridade é a marca indelével da eternidade.

Quero-me, rejeitando-me, desejando que os quarenta fossem agora e o mundo se tornasse tão mudo que a pulsação cardíaca que me estoira os ouvidos se esvaísse.

Até onde podem ir os desejos substitutos, os planos por agora? Seremos para sempre anónimos perante nós mesmos? E se não o formos, quem seremos?

Para ouvir: Porz Goret de Yann Tiersen

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