Batiam-lhe à porta. No leito sobrepovoado por almofadas azul-céu, Octávio deixara-se cair, de novo, no sono. Ignorara o ruído do mundo, embalado pela vontade de regressar àquele universo fascinante que produzira. Aí ficaria perdido, talvez para sempre.
Catorze horas de sono era, contudo, tudo o que aguentava.
Acordava somente quando o seu corpo já nem sequer concebia a possibilidade de permanecer nessa mesma posição. Despertava sempre contra-feito. Irrevogavelmente, ansioso pela próxima viagem a esse seu Éden particular.
O ar húmido da tarde açoriana asfixiara o seu regresso à realidade. Abrira os olhos e escutara o cantar histérico das aves e dos cães da vizinhança. “Mais uma manhã perdida”, pensara irritado.
Apressara-se a vestir o uniforme: uns jeans rasgados e um camiseiro, impecavelmente, branco. A combinação estranha de quem se esqueceu de lavar a roupa.
Arrastara-se até ao jardim para, finalmente, tomar o pequeno-almoço e devorar algumas páginas amareladas da sua lista de leituras estival.
O seu estômago rugia. A relva selvagem fazia-lhe cócegas nas solas nuas dos pés. Sentou-se na rede de descanso, apreciando o oceano não tão distante e a maresia que, irrepreensivelmente, enchia a respiração insular.
O chá verde escaldava-lhe a língua. Octávio adorava-o, sentia-se entorpecido, quase capaz de adormecer de novo. Deitou-se na rede para tentar regressar ao oásis criativo do seu cérebro. Nada. Completamente desperto.
Ao seu lado, a cópia quase intacta do mais recente livro de Vargas Llosa jazia triste. Chorava-lhe ao ouvido o tempo que tinha sido abandonada. Octávio arriscou umas páginas, extremamente interessado naquele novo autor.
O primeiro capítulo trouxe-lhe rapidamente o tremer delicioso do cansaço que se sente no canto externo do olho esquerdo. Doíam-lhe os olhos, os braços e o desejo de viver.
A escuridão do seu corpo agradava-lhe. Estava, num minuto, naquele jardim doméstico, no outro, no labirinto da sua mente.
A clorofila adocicada substituíra o aroma do sal. O azul constante e desbotado entre o céu e o manto infindável de mar dera lugar ao verde forte e gasto daqueles arbustos de 3 metros. Octávio estava, de novo, perdido no seu jogo privado; o mesmo onde já conhecera o amor da sua vida, um padre, uma fada e um esquilo falante.
“Quem encontrarei hoje?”, perguntou-se a rebentar de curiosidade. O ranger agreste da terra despertara-o, verdadeiramente. Nunca se sentia tão acordado como quando estava dormir e a sonhar.
Octávio corria, errava, regressava e tentava de novo outra solução. À terceira vez, no topo da parede alta, uma silhueta insinuante gritara pela sua atenção.
“Bem-vindo, querido”, cumprimentou a mulher com voz de mel derretido. “Estás pronto para a transformação”, sorriu-lhe, sedutoramente.
Octávio acenou, confuso. “Quem és tu e do que falas?”, quis saber a todo o custo. A rouquidão apoderara-se dele.
“Não te lembras de mim? O meu nome é Eva. Sou a mãe de todo este mundo. Sou a tua mãe, querido”, respondeu-lhe eloquentemente a figura esbelta que agora se sentara ao seu lado.
“A minha mãe morreu há mais de dez anos. Que queres tu?”, entrou ele no jogo exótico. “Vim trazer-te a Opção”, informou Eva, seriamente.
“Poderás cá ficar e, eventualmente, até conhecer o que se esconde para lá destes muros férteis ou terás de acordar e resignar-te a um sono morno, nada lúcido. Um aborrecimento, digo-te eu. Chamam-me a Vendedora de Sonhos”, gargalhou suavemente Eva.
Octávio permanecia imóvel, mas sentia o seu corpo mortal, físico sacudir de riso. Estava a acordar com aquela gargalhada. “Para, para. Não quero voltar. O que tenho de fazer para cá ficar?”, questionou o homem idoso.
O brilho cobre do cabelo de Eva enfeitiçara-o. Sentia-se convicto desse desejo, embora lhe custasse a acreditar que o que estava a acontecer pudesse ser verdade. “Vendo-te este elixir que apagará a tua existência real por 50 anos de vida”, ofereceu a pretensa mãe-natureza.
Aos 60 anos, era difícil pensar que lhe sobrava mais meio século. Raptou a garrafa da mão delicada da bela mulher que agora o acompanhava nos pequenos passos que decidira investir no caminho terroso do labirinto.
Sentiu-se inebriado pelo odor a mirtilos e a hortelã do líquido escuro. Na eventualidade daquilo não passar de mais um dos seus extraordinário sonhos – um daqueles pelos quais dormia até lhe doerem os ossos – pelo menos acordaria com a gula satisfeita.
A rigidez das suas pernas carcomidas pelos anos tornara-se macia, flexível, imaginária. A elasticidade de outros tempos invadia-lhe as articulações. Octávio era de novo um rapazinho.
“Restam-te dez anos”, sussurou-lhe Eva, antes de desaparecer. “Dez anos?”, berravam os pensamentos do idoso tornado criança.
Apagado do mundo real, Octávio deixaria-se perseguir pelas infindáveis companhias que aquele mundo falsamente utópico lhe prometia. Mais uma lagarta falante; um caixeiro viajante; de novo, o amor da sua vida; uma petúnia teimosa; um jovem escultural;
Enfim, um desfile que lhe aquecia o coração [inexistente] e garantia os últimos anos de incomparável felicidade.
Estrangeiro numa realidade que não era a sua, Octávio imigrara para um mundo que o amamentara.
Eva vendera-lhe não um sonho feito daquele matéria anímica e esponjosa que os mortais costumam experimentar, mas a quimera concretizada de um mundo leve e, perfeitamente, irreal.
Duplamente delicioso: o conto e a ilustração.
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Obrigada 🙂 A ilustração é no mínimo excêntrica: labirintos como este não podem deixar de inspirar qualquer um.
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Uma imagem contextualizada … adoro. E o template da Isabel valoriza esses dois mundos: o da escrita e o dos olhares 😉
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Dois grandes amores meus. Tinha de os valorizar 🙂
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