Não transforme a sua paixão num emprego

Nascida na idade do alcançável, dos sonhos rápidos e mil talentos, arrisquei apresentar ao mundo esse hábito criativo que decidira tomar por profissão. “Não te critico a ti, mas ao teu trabalho”, torna-se, facilmente, numa ameaça letal que nem todos parecem aguentar. Está preparado?

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“Faz aquilo que amas e nunca terás de trabalhar um dia na tua vida”, gritam os cartazes em superavit de incentivo à geração do milénio sem terem em conta o enorme risco que essa transformação conserva.

No final do semestre mais frustrante que já tive o prazer de encontrar, dei por mim perdida, sem me reconhecer na ausência desse sonho que ousara investir no mercado de trabalho e que, na sequência, se começara a tornar insuportável.

Oito anos de dedicação a um mundo virtual que, desde sempre, me apaixonara terminaram ali, naquela experiência infeliz de encontrar alguém incapacitado para a importante tarefa que é guiar um sonhador ao seu desenvolvimento.

Maus tutores, todos nós encontraremos.

Entregar-lhes os nossos corações em forma de habilidade inédita é, parecia-me, uma estratégia corajosa que, a bem ou a mal, nos fará crescer. Estava errada.

Doze anos de ensino obrigatório levaram-me, rapidamente, à decisão instintiva por aquilo que apregoava de forma quase irritante há quase meia vida.

Jamais congeminara sequer seguir o Direito aconselhado, a fortuna anunciada e o sucesso iminente. Queria ser espontânea, rebelde, genuína.

Nas pontas dos meus dedos, haviam sempre dançado as teclas ao som acelerado dos meus pensamento tresloucados. No lado esquerdo do meu dedo grande, o calo indicava a convicção que cada palavra tomava de mim.

Escrever – ficção, factualidade ou qualquer género que cumprisse um objectivo – tornou-se, desde o início da minha adolescência, num apêndice livre dessa condição de prótese.

Sentia-me escritora e jornalista, desde a origem, numa atitude pedante de quem se crê parte de um universo concreto.

O autocarro sobrelotado do terceiro ciclo deixava-me em casa ao início da tarde.

Eu, sentada perante o monstro negro que ruminava o início da sessão, começava a escutar as primeiras notas da peça clássica que escolhera e deixava correr essa energia da minha [in]consciência para a folha vibrante do documento digital.

Nesses dias, os mundos sem forma que vomitava motivada pelas cadências de Yann Tiersen – sempre fui a criança com o gosto musical ao lado da moda – corriam-me nas veias: revitalizavam-me.

Esperava eu que, um dia, essa paixão se tornasse num grande emprego (e legado).

Esperava, como de resto o fiz, vir a estudar o engenho interior desta arte apaixonante. Domar a besta e a História em toda a sua glória.

Portanto, desculpem a minha ingenuidade, se, quando me perguntaram, finalmente, o que queria ser, lhes disse “escritora, com certeza; e, pelo caminho, jornalista, com um enorme J de missão”.

Berrei-lhes que não consentiria que a distância, a precariedade ou a desventura me demovessem.

Partilhei uma caixa de sapatos com um general alemão que vivia no centro da batalha; sobrevivi a refeições sem sabor; perdi momentos tremendos das vidas que me eram mais próximas; dormi no aeroporto; acordei no céu; vivi com rapazes italianos que apreciavam a pasta, mas odiavam a limpeza; senti na pele a solidão, de sorriso no rosto e lágrima escondida por uma aventura que o desmérito quase fez desaparecer.

No dia em que baixei o braços e aceitei, por fim, a certeza de que esse louvor que sonhara estava longe do meu alcance, percebi que parte de mim tinha sido roubada; que essa fantástica campanha que adorna as ruas não é mais do que uma mentira.

“Façam algo agradável, deslumbrante até, mas mantenham esse grande centro duro de amor para o mundo protegido do paralelismo”, digo-lhes eu, já recuperada e mais ciente dessa cisão monumental que me obrigaram a cometer.

Depois de um semestre em que a minha voz se perdeu na desorientação de cadeiras, verdadeiramente, livres, pouco me restava de energia.

“Quem raio sou eu? E que faço agora com isto, sem competências extraordinárias?”, pensei, aflita, numa viagem de metro gelada e ruidosa.

Sabia lá eu que o mundo pode ser imperfeito; que a ditadura é a sério ou que o conforto estimula o pior nas pessoas.

Oito anos depois, lá estava eu de malas prontas, notas lançadas e sem conseguir escrever um parágrafo. 

Estava à deriva na desinspiração desse orientador que falhara, duramente, a sua missão; certa de que o dia seguinte seria, somente, suportável. 

Não foi.

Se é verdade que esse infortúnio mal aconselhado acontece, também é genuíno que essas massas prometidas de fascínio se aproximam.

Sem elas, estaria, sem dúvida, enfiada nos traços gerais de um talento que reduzira a números.

Cinco meses depois, nasceu o Estórias: emergiu dessa agonia vibrante que é a realização de um espaço apaixonado dedicado ao nosso coração, longe do escrutínio aterrador da profissão.

Caro leitor, estou neste momento a tentar fazer da minha vida uma rotina diária de Salada de Estórias, bem saberá.

Hoje, sei, contudo, que o amor – que a escrita que na minha alma floresce – tem de ser guardado para a criação, não para a feira.

Vou contar-lhe um segredo. Esta jornada transformou-me: apresentou-me um mundo de pessoas tão ricas e que, todos os dias, me impressionam.

Ao seu lado, sinto-me concretizada na alegria doce de um dever cumprido.

É, porém, na criatividade que continua a viver essa adolescente pálida que escrevia sobre nada num movimento sensual de palavras desconexas  quase ilegíveis.

Não me chame cobarde.

Afinal, voltei à cena digital, ressuscitando esse fantasma quase esquizofrénico.

Mas reconheça comigo que a existência é um dom multifacetado que merece muito mais do que uma obsessão contínua, que, num só golpe, nos pode fazer desmoronar.

Para ouvir: Le moulin de Yann Tiersen

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