Tragam os archotes, as correntes e os machados que há uma criatura monstruosa a rondar a cidade. Mas será o pai ou o filho? O criador humano desprezível ou a criatura sobrenatural carente?
Victor Frankenstein cresceu nos cumes gelados da Suiça, perdido na felicidade de uma família harmoniosa, abastada e culta e nas infinitas viagens a que se todo o clã se dedicara.
Victor, o eterno privilegiado, acabaria, contudo, por gerar o inimaginável: vida, aproximando-se de um Deus, que rapidamente cai em desgraça, desprovido do instinto [divino] que é a paternidade.
Frankenstein, escrito por Mary Shelley, na sua juventude, introduz uma fascinante questão: não serão os Homens bestas?
A entrega determinada à descrição dessa infância fabulosa de Victor indicia, subtilmente, a vontade de retratar a condição humana ao pormenor, que, por sua vez, se reflecte em ambos os protagonistas da relação estranha que brilha nesta obra: o criador e a criatura.
Frankenstein, apaixonado pelo conhecimento e pela Filosofia Natural, consegue, num noite escura e tenebrosa, conceder fôlego a um amontoado de retalhos humanos sobrenatural.
Foge-lhe, de imediato, incapaz de olhar o ser quase gigante que criara, abandonando-o nos primeiros momentos de existência sem sequer pensar nas consequências que estaria, assim, a fomentar.
Victor é, de facto, um fanático prepotente que se apoia, abusivamente, no ombro de terceiros e falha na concretização das suas responsabilidades.
O filho de Frankenstein – chamemos-lhe, assim, na ausência de um nome e na desadequação, por princípio, do termo “monstro” – cresce, por isso, num bosque recôndito sem amo ou mão carinhosa, desconhecedor de todas as sensações ou linguagens, movido, estritamente, pelos instintos selvagens da protecção e da alimentação.
A criatura quase feliz, curiosa e encantada com tudo o que a natureza lhe oferece inicia o [suposto] processo de bestialização, somente, face à crueldade dos Homens, que a agridem, ainda antes de perceberam a real dimensão da ameaça.
Abandonada, mas, ainda assim, esperançosa, a obra de Victor procura conforto na humanidade de forma remota, ajudando-a sem o seu conhecimento e aprendendo os seus hábitos e meios de comunicação.
Ao famoso monstro falta-lhe, apenas, a desejável companhia, que, no limite, pede ao próprio criador.
A recusa de Frankenstein e o desprezo que devota ao seu próprio trabalho provocam, irreversivelmente, todos os eventos que povoam a agradável obra de Shelley.
O nascimento do seu filho faz de Frankenstein um jovem doente, quase louco, que evita o mundo e os amigos.
Victor deseja nada além da solidão e da paz, que jamais voltará a encontrar.
É um egoísta que se disfarça com a pele nívea do cordeiro: é, extraordinariamente, o verdadeiro monstro desta obra.
A criatura rejeitada pela sociedade, culpada de demasiados assassinatos e certa do seu extremo poder conserva, porém, uma centelha interessante de humanidade: o sonho de amar, ser amado e de conviver.
“Quão estranha é a natureza do conhecimento! Apega-se à mente depois de tê-la alcançado como um líquen à rocha”, vai escrevendo o órfão.
No sucesso da autora britânica, há um conjunto de contrastes e ligações, expressamente, ricos e complexos: criador/criatura, amo/mestre, monstro/humano.
Este é, portanto, um desfile excelente da raça humana pelos olhos das suas vítimas, evidenciando os seus sintomas monstruosos e desvendando os que de entre nós se inclinam, disfarçadamente, para o lugar deixado vago pela criatura.
O desenlace – esse triste e quase morno final – deixa-nos, todavia, incertos.
Não poderia finalmente a criatura encontrar esse companheiro que sempre desejara?
Walton, o aventureiro a quem é contada esta história, poderia, na minha opinião, conceber o par perfeito para este ser incompreendido.
Afinal, seriam ambos beneficiadores de uma relação já anunciada como desejável pelo explorador.
“Desejo a presença de um homem que me compreenda e cujo olhar responda ao meu”, revela à irmã.
Victor deixara claro que jamais o tomaria por verdadeiro camarada, na ausência de uma ligação semeada na infância, mas arrependido e tão solitário, não seria o seu filho o parceiro ideal para esta expedição ao topo do mundo?