O romance a galope de uma estrada irreal

N’ O caderno de Maya, Isabel Allende arrisca uma aventura, predominantemente, não-mágica que não deslumbra, mas agarra. Pronto a sucumbir, o romance da escritora chileno-americana sobrevive no esforço do leitor enredado pela estranha, só e usual protagonista.

Maya confessara uma memória dedicada ao trapézio. Alertara-nos para a possibilidade do vazio. Recusara oferecer-nos uma narração linear dos acontecimentos que fizeram dela a fugitiva que se apresenta logo nas primeiras páginas.

Nós, demasiado ingénuos, esperávamos um bailado engenhoso, frustrante, enfim sedutor. Esse crescimento fascinante perece, porém, na premissa. Allende fica-se pela confissão vaga e distante de uma adolescente, estranhamente, protegida pela campânula do ideal.

Perseguida pelo FBI, por um par de traficantes, por um polícia corrupto e pelos fantasmas que, entretanto, coleccionara, Maya refugia-se numa pequena insula do Chile, Chiloé, onde encontra a tranquilidade irreal que povoa e destrói este romance.

Suspensos pela vontade de desvendar o mistério que envolve a perseguição feroz da adolescente de 19 anos, somos arrastados pelas quase 400 páginas d’ O Caderno de Maya sem nunca atingir o frenesim que aguardávamos.

Terminamos com a certeza da ausência da verdadeira alma desse mundo do vício, da prostituição, dos perigos da adolescência que a história de Maya propusera explorar.

A arquitectura da obra de Allende é, por outro lado, duvidosa. Dividido em quatro grandes porções – que coincidem com as estações do ano – o romance fragmenta-se em pensamentos curtos e rápidos. De página e meia em página e meia, a narração é interrompida, substituída, recomeçada.

Esse truque potencialmente genial, isto é, capaz não só de fornecer um ritmo interessante, mas também de manter actualizadas duas narrativas paralelas, prendendo, irremediavelmente, o leitor, tende, contudo, a falhar.

N’ O caderno de Maya, sentimos não o compasso de uma vida, mas a cadência da sua redacção. Esses farrapos narrativos que se entrecortam apresentam Allende à secretária, perante o ecrã luminoso e o documento vazio que tem, imperativamente, de popular.

O fôlego das primeiras páginas – que apesar de sofrerem dessa patologia, são, ainda assim, levemente apaixonantes – anunciara uma obra muito mais larga.

Alimentara-se uma besta de suspense que morre à míngua, logo a seguir, na viagem apressada pelos piores (e mais relevantes) episódios do passado de Maya. A ânsia é tal que, no seio de uma adição profunda (Maya confessa a necessidade de estar, permanentemente, drogada e bêbada), é-nos impingida de forma, ridiculamente, natural uma recuperação em poucos dias.

As primeiras páginas haviam versado longamente sobre uma infância ideal terminada com uma morte impactante. O corpo da obra entrega-se, porém, ao desfile genérico de personagens-tipo, racialmente, estereotipadas e desprovidas do espaço que lhes é devido.

O intenso projecto manifestado, no início, falece, tristemente, na correria dessa segunda descrição e nesse desenlace irreal que une, de modo pacífico, uma família, inexoravelmente, despedaçada.

Allende vira morrer dois enteados nas mãos do vício. A Maya confere, todavia, não só a possibilidade de uma reabilitação quase total – o curto momento de reincidência é também ele esmagado pela azáfama narrativa – mas, sobretudo, a faculdade de se sentir superior e de curar o próximo, antes mesmo de se salvar a si própria.

N’O caderno de Maya ecoa uma voz, por vezes, juvenil, por vezes, caduca, que a galope promete conquistar esse paradoxo que é sentir, em simultâneo, o abandono e a mais intensa afecção. 

A solidão e as suas múltiplas facetas é aqui, ainda que não brilhantemente, colocada sob a lupa de uma autora acostumada a um realismo mágico bem mais temperado que este irrealismo muggle.

Este bicho sôfrego merece, assim, somente o carinho daqueles dispostos a preencher as lacunas com uma dose extra de imaginação e entrega.

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